A batida é a mesma. As letras que são diferentes’, explica Tonzão Chagas.
Destaque dos Hawaianos, um dos mais conhecidos grupos de funk do Rio de Janeiro, Tonzão Chagas deixou os companheiros em 2011. No auge da popularidade e quando ganhava cerca de R$ 20 mil por mês, ele se converteu à Assembleia de Deus dos Últimos Dias. Tonzão rapidamente ganhou fama no meio, cantando hits como “Passinho do abençoado”, e hoje se orgulha de embalar 200 mil pessoas em uma única apresentação.
“O funk é a cultura da periferia. A batida é a mesma. As letras que são diferentes. A dança é uma forma de evangelizar”, conta Tonzão. “Eu não saí dos Hawaianos com a ideia de seguir uma carreira gospel. Eu queria fazer um trabalho social, com jovens de periferia, de ressocialização. E nos Hawaianos eu não tinha tempo para isso”, explica.
Assim como ele, outros músicos passaram a dedicar as suas carreiras ao chamado funk gospel (ou gospel funk), que leva para a música evangélica um ritmo que parecia incompatível, com tradição de letras que fazem apologia à violência e ao sexo.
Na transição, o funk passou por adaptações. As roupas curtas, as letras maliciosas e as danças sensuais são trocadas por figurinos comportados, temas religiosos e coreografias animadas, mas bem menos provocantes. Para Tonzão, a ideia de que poderia adaptar sua antiga carreira à sua nova vida surgiu de uma brincadeira com jovens recém-convertidos, como ele, e que o conheciam como funkeiro. Começaram a dançar na igreja e foram chamados pelo pastor, que os viu dançando por uma câmera de segurança e pediu explicações. Contou que estavam dançando como uma forma de louvor.
O vídeo no qual Tonzão canta o “Passinho do Abençoado” pela primeira vez, dançando funk de terno e gravata com companheiros de igreja, tem quase 2 milhões de visualizações em apenas uma das inúmeras cópias que se espalharam pela web.
Sobre o retorno financeiro, Tonzão afirma que ganha bem menos do que quando fazia sucesso no funk “secular” (tradicional), mas afirma que seu dinheiro é melhor empregado.
“Nos Hawaianos eu ganhava mais. Mas hoje eu tenho tempo para ver a minha família. As pessoas diziam que a minha mulher ia me largar. E hoje estamos casados e com dois filhos. O dinheiro não é igual, mas rende melhor. Porque eu não gasto com um monte de mulheres, com baladas e drogas, que eu cheguei a usar por curtição”, afirma Tonzão. Há um ano, ele e sua esposa fazem parte do Ministério Flordelis.
Unindo paixões
Quem também fez uma conversão para o gospel funk foram os irmãos Tiago e Diogo, que começaram a cantar funk ainda adolescentes, em 1995. Eles fizeram parte da primeira geração do ritmo a se destacar no Brasil, ao lado de nomes como Latino, Catra e a dupla Claudinho e Buchecha.
Fizeram shows em todo o país com músicas como “Pegação”, “Palco” e o “Rap do Pombal”. Em 1998, se converteram e decidiram largar tudo. Como a renda da família vinha das apresentações e da execução das músicas, depois de um tempo começaram a enfrentar dificuldades financeiras.
Para sobreviver, fizeram de tudo um pouco: trabalharam como barbeiros, venderam hambúrgueres e se tornaram ambulantes. Mas, ao longo do tempo, a saudade dos palcos começou a bater. Em 2007, juntaram dinheiro e pagaram a gravação de um CD com letras de temática cristã. “Nós gravamos o CD e deu certo. Para divulgar, começamos a colocar caixas de som nas ruas para vender cópias. Assim, vendemos 40 mil CDs”, afirma Diogo. Em 2011, Tiago e Diogo voltaram a fazer sucesso com a música “Brasileirinhos”, em homenagem às crianças mortas no massacre da Escola Tasso da Silveira, em Realengo. Outras músicas começaram a tocar nas rádios especializadas para o público evangélico e eles assinaram contrato com uma grande gravadora em 2013. Entre as músicas da dupla estão “Telefone do Céu”, “Atravessei a Poça” e “Missionário do Funk”.
A dupla atualmente não canta mais músicas seculares, mas Diogo ressalta a importância cultural do gênero na sociedade e na vida dele e do irmão, que se consideram evangelizadores. “Eu consegui unir as minhas duas paixões. Eu vivenciei o funk, que é bacana e não sou contra. Faz parte da cultura. E resolvemos cantar o gospel funk. A mensagem é a diferença. A nossa mensagem é uma mensagem espiritual, para o coração dos jovens”.
Operário do gospel funk
A trajetória de Tonzão e dos MCs Tiago e Diogo se parecem com a do MC Henrique H7, de Volta Redonda, no Sul Fluminense. Ele começou a cantar funk aos 13 anos. “No início, eu cantava letras sobre apologia ao crime, sensualidade, sobre a realidade. Aí eu fui para a igreja e transformei a minha vida. Eu vi que o crime não compensa e a música é para alegrar”.
Autor de “Ai, que benção”, ele concorda que hoje ganha menos do que ganharia se seguisse carreira no funk tradicional, mas acredita que a sua música cumpre uma função social. Ele tenta conciliar a carreira de shows com as folgas do trabalho em uma indústria, como operário. “Eu vivia em um mundo de coisas fáceis. Talvez estivesse em uma situação financeira melhor, mas com o meu som eu ajudo pessoas”.
Sobre o preconceito contra o ritmo, Henrique H7 afirma que o seu papel é cumprido como o de qualquer outro cantor gospel. “Eu louvo a Deus, só altera o ritmo. Canto funk da mesma maneira que poderia ser um pop ou um rock”.
Nova geração
O sucesso do gospel funk já inspira uma nova geração de MCs, que desde o começo de suas carreiras já trabalham exclusivamente com letras de louvor, sem terem passado por uma fase na vertente tradicional do ritmo. Este é o caso da MC Thaísa Soares, de 18 anos, de Campo Grande, na Zona Oeste do Rio. Evangélica de berço canta funk há dois anos e conheceu o gênero musical no Baile dos Cocadas, que tem temática gospel e acontece em Bangu, também na Zona Oeste. Ela acredita que a música é uma forma de expor suas ideias e evangelizar os jovens. “Desde que eu comecei, o gospel funk cresceu. Era mais difícil e éramos mais criticados. Mas o trabalho segue fluindo”.
Bonita, seus figurinos passam longe do que seria esperado para uma cantora de funk da sua idade. Com calças compridas e camisas com manga, ela entoa canções como “Olha aí ó” e “Vigia para não passar peleja”.
“Como a roupa permitida depende da doutrina da igreja, eu me visto com roupas mais comportadas”, conta a jovem, que paralelamente à carreira musical, planeja fazer faculdade de Engenharia.
Todos os intérpretes ressaltam que o trabalho que fazem é uma maneira de evangelizar os jovens a partir de um ritmo que faz parte da vida deles. Tonzão resume o caso destacando que cantar funk é uma forma de mostrar ao mundo a sua nova realidade, mas sem alterar as suas raízes. “Eu já cantei funk nas maiores igrejas do Brasil. Tudo sem perder a essência. Porque eu sou isso. Eu sou funk, sou favela, sou periferia”.
Fonte: g1.globo.com